Uma percentagem significativa (62%) dos jornalistas portugueses acreditam que não e defendem que face ao novo contexto da profissão, potenciado pela expansão do digital e das redes sociais, será necessário a breve prazo repensar os velhos valores do Código Deontológico do Jornalista e adequá-los à nova realidade do jornalismo.
A conclusão resulta de uma investigação nacional pioneira – conduzida durante o ano passado junto de 300 jornalistas portugueses no ativo de 76 órgãos de comunicação nacionais -, no âmbito da dissertação de mestrado “A utilização das Redes Sociais pelos jornalistas portugueses: novos desafios éticos e deontológicos para a profissão”, realizada na FCSH-UNL, que permitiu não só traçar um retrato do modo como os jornalistas portugueses utilizam as redes sociais como também, identificar indícios de conflito ético e deontológico decorrentes da sua presença nestas plataformas.
Em comum, os jornalistas Octavia Nasr e Roland Martin têm uma longa carreira ao serviço da CNN e o facto de ambos terem sido despedidos em virtude de opiniões partilhadas nos seus perfis no Twitter. Octavia Nasr lamentou publicamente a morte do líder espiritual líder espiritual do Hezbollah, Hussein Fadlallah, e Roland Martin cessou funções depois de fazer piadas sobre a comunidade gay no Twitter. Partilhas que, aos olhos da CNN e dos seus Códigos de Conduta, eram passíveis de constituir um atropelo ético à profissão e de colocar em causa a credibilidade dos profissionais e da própria CNN junto do público. Ao contrário do que sucede noutros país, não vigoram nos órgãos de comunicação portugueses Códigos de Conduta específicos para a atuação dos jornalistas nas redes sociais – recorde-se, porém, a tentativa conduzida neste sentido por José Alberto Carvalho, à data Diretor de Informação da RTP, que mereceu a reprovação da redação e do próprio Sindicato dos Jornalistas – nem há notícia de casos de despedimento entre os jornalistas decorrentes do seu posicionamento online. Contudo, tal como noutros países, reconhece-se que a utilização crescente das redes sociais está a colocar novos desafios e dilemas até aqui inexistentes aos jornalistas no exercício da profissão potenciados, sobretudo, por uma maior proximidade e ligação permanente às audiências, mas também pela dificuldade em delimitar nas redes sociais as fronteiras entre “o eu cidadão” e o “eu jornalista”.
É na delimitação dúbia entre as esferas pessoal e profissional do jornalista nas redes sociais que resulta a base de todos os conflitos éticos identificados nesta investigação. Entre os 300 profissionais portugueses no ativo inquiridos, 81% assumiram combinar uma utilização pessoal e profissional nestas plataformas e destes, 86% possuem apenas uma só conta que utilizam para ambas as valências. O cenário é agravado não só pelo facto de 95,2% dos profissionais especificarem neste perfil de esferas partilhadas a sua profissão e, em alguns casos (88,7%), também o órgão de informação para o qual trabalham, mas sobretudo por combinarem numa mesma conta públicos distintos, reunindo entre os seus “amigos” ou “seguidores” a família e amigos pessoais, mas também fontes profissionais (91,2%), políticos e membros do Governo (64,2%), empresários (83,6%) ou outros intervenientes no processo de construção de informação.
Para muitos dos órgãos de informação internacionais foi o risco desta mistura de “audiências”, unanimemente apontada como explosiva do ponto de vista ético e deontológico, que motivou a criação de regras específicas para a atuação dos jornalistas nas redes sociais que, ainda que polémicas e muito contestadas (sobretudo na eventual limitação dos direitos individuais dos jornalistas enquanto cidadãos) foram apresentadas como formas de proteção dos profissionais e empresas no novo contexto do jornalismo. Na verdade, parece resultar claro que é o reconhecimento do jornalista enquanto profissional que leva o público a querer segui-lo nas redes sociais.
Consequentemente, será difícil a esse mesmo público identificar com clareza se a opinião que o jornalista partilha no seu perfil é pessoal ou profissional. Tanto mais que, à luz das conclusões alcançadas, os próprios jornalistas também não são totalmente transparentes nessa diferenciação, adotando alguns comportamentos que podem constituir fator de risco, nomeadamente no campo da emissão de opiniões ou comentários.
Muitos dos exemplos recentes envolvendo o despedimento ou suspensão de jornalistas estrangeiros devido à sua atuação nas redes sociais, tiveram a sua origem na exposição dos profissionais perante a audiência através da emissão de opiniões polémicas ou comentários que, à luz das regras da profissão seriam capazes de minar os deveres de rigor, imparcialidade e isenção exigidos aos jornalistas, colocando assim em causa a sua reputação e credibilidade, bem como da empresa que representam, junto do público. Recordando que, tendencialmente, os jornalistas portugueses congregarem na mesma conta vários públicos, ganha particular expressão o facto de 43,4% admitirem partilhar nos seus perfis conteúdos ou comentários opinativos de cariz económico ou político, sendo que, 46,8% dos profissionais que assumem realizar estas partilhas, referem que nas redes sociais não fazem qualquer distinção entre os seus comentários pessoais e profissionais. Entre os 300 jornalistas inquiridos, 52,5% admitem também o hábito de colocar likes ou subscrever feeds de páginas de figuras públicas ou empresários e 56,9% confirmam apoiar regularmente, com likes ou partilhas, causas ou movimentos sociais, culturais, políticos ou religiosos. Os comentários a partilhas realizadas por terceiros são também uma prática entre os profissionais inquiridos com 54% dos jornalistas portugueses a admitirem comentar regularmente posts que circulam na rede e 54,7% a assumirem a total orientação pessoal destes comentários.
Nas redes sociais, a análise realizada à atuação dos jornalistas portugueses permitiu ainda identificar, além das ações com eventual impacto nos deveres de isenção e imparcialidade, outros focos de risco ético e deontológico, nomeadamente nos campos do rigor. 40,5% dos jornalistas inquiridos admitem realizar diariamente partilhas de conteúdos gerados por outros utilizadores e 39,4% reconhecem que nem sempre aplicam às informações que partilham os necessários preceitos de confirmação da origem e veracidade da informação antes de realizar a partilha, ficando assim de forma das redes sociais um dos deveres mais elementares do jornalismo. 10,9% dos jornalistas admitem confirmar raramente ou só muito raramente as informações que partilham.
Promover o seu trabalho (89,4%), aproximar-se do público público (84,1%), aceder a informação e contactar fontes e outros intervenientes relevantes para o seu quotidiano profissional (91,9%), são as grandes âncoras do posicionamento dos jornalistas portugueses nas redes sociais, com o Facebook a reunir a preferência de 83,5% dos profissionais. Contudo, apesar desta confessa utilização profissional, os jornalistas portugueses continuam a enquadrar a sua presença nas redes sociais na esfera pessoal. Como resultado, utilizam as redes como recurso para a sua atividade profissional, mas não transferem para as plataformas as mesmas regras éticas e deontológicas que aplicam no seu trabalho diário nas redações. Um posicionamento híbrido que pelo sucessivo esbater de fronteiras entre público e privado e pela maior exposição que o jornalista ganha perante a audiência nestas plataformas, colocam profissionais e empresas num terreno de ninguém com graves impactos para a credibilidade de ambos. De resto, são os próprios profissionais quem o reconhece, ao admitir que as novas plataformas hoje ao serviço do jornalismo podem com facilidade constituir uma ameaça aos princípios éticos do jornalismo (54%) e que o novo contexto da profissão vai exigir que os velhos valores plasmados no Código Deontológico sejam repensados. Tanto mais que para 98,1% dos 300 profissionais inquiridos, não restam dúvidas de que numa época de abundância informativa, a ética a que os jornalistas estão obrigados será o seu principal selo de garantia junto do público e um fator determinante para a continuidade da profissão.
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