O parlamento europeu acaba de aprovar a segunda versão da proposta de diretiva sobre direitos de autor, que agora segue para o Conselho e para a Comissão para ser redigida. O objetivo é atualizar as regras europeias numa área em rápida evolução e na qual os limites da lei são facilmente transpostos.
As duas questões mais polémicas constantes do diploma têm implicações diretas na liberdade de expressão dos europeus, embora sejam apresentadas como meros ajustamentos no equilíbrio entre os interesses das indústrias culturais e das empresas de tecnologia. A primeira dessas questões tem a ver com a obrigação de pagar aos editores pela ligação a notícias e a segunda prende-se com a obrigação de criar filtros para os serviços de conteúdos gerados pelos utilizadores, de forma a que estes não violem os direitos de autor.
A Alemanha e a Espanha já tinham incorporado nas sua legislações nacionais de propriedade intelectual a obrigação de pagar aos editores pela partilha das suas notícias, aliás com resultados muito discutíveis. No caso de Espanha, o único resultado foi aliás o encerramento do Google News, com um retorno financeiro residual para os meios de comunicação social. Segundos os editores, trata-se de evitar que motores de pesquisa como o Google gerem as suas receitas à custa de conteúdos que não são seus e pelos quais não pagam. A ambição de qualquer editor é que os leitores cheguem aos conteúdos noticiosos no seu próprio website, de modo a que sejam impactados pela publicidade que os acompanha e não sejam distraídos ou seduzidos por ligações externas. Mas a verdade é que uma grande parte das notícias são lidas depois de serem descobertas nas redes sociais (embora os serviços de mensagens, como o WhatsApp, comecem a consolidar-se também como canais de partilha de notícias). O resultado são notícias digitais editadas dentro do espírito analógico e que não permitem ao leitor chegar às fontes primárias de informação ou ampliar os dados de que dispõe.
Com a nova normativa europeia, a informação disponível na internet ficará mais pobre, uma vez que passará a haver certas fontes de informação – as notícias dos meios de comunicação social – em relação às quais tenderemos a evitar estabelecer ligações. E, mesmo assim, isso dificilmente solucionará os problemas dos meios de comunicação na sua busca por um modelo de negócio viável. Além disso, se as notícias dos meios de comunicação social profissionais não estiverem disponíveis, o mais certo é que os utilizadores recorram a outras fontes de informação menos rigorosas, agravando assim ainda mais o problema da desinformação que já existe online.
A mesma indignação dos produtores de conteúdos face à forma como os gigantes da internet geram lucros fabulosos a partir dos seus conteúdos deu também origem ao artigo 13, que obriga a filtrar com algoritmos os conteúdos que são carregados pelos utilizadores. Se o artigo anterior poderia, com propriedade, ser chamado de ‘taxa Google’, este poderia ficar conhecido como a ‘taxa YouTube’. Embora as situações sejam de facto diferentes. Na verdade, o YouTube paga aos proprietários dos conteúdos quando, por exemplo, alguém carrega uma canção da Beyoncé. O seu sistema de filtragem, conhecido como ContentID, identifica que a peça incorre em direitos de autor e pergunta ao proprietário o que pretende fazer com ela. Pode ficar na rede, eliminar-se ou monetizar-se através de publicidade, tudo controlado por um algoritmo que compara o arquivo que foi carregado com outros que tem como referência. O problema é que o YouTube paga à editora ou ao estúdio em causa apenas uma pequena parte, não negociável, do retorno publicitário gerado. Para as indústrias culturais, o ideal seria poder negociar essa parcela, tal como é feito com o Spotify. O problema é que, no caso do YouTube, não é o próprio YouTube que carrega os conteúdos, mas sim os utilizadores diretamente, pelo que a plataforma acaba por não poder ser responsabilizada a priori pelas infrações em que um determinado conteúdo possa incorrer.
Ainda assim, o YouTube investiu vários milhões e demorou uma década a desenvolver o ContentID. A ideia, agora, é que todos os serviços semelhantes sejam capazes de implementar uma tecnologia que funcione da mesma forma, bloqueando os conteúdos que estejam sujeitos a direitos de autor. O problema é que poucas empresas têm a capacidade tecnológica e a almofada financeira que o YouTube e a Alphabet possuem. Por isso, o que pode acontecer é que, em vez de moderar a forma como o YouTube explora os conteúdos alheios, gerando o tal “value gap” de que tanto se fala, isto venha a consolidá-lo ainda mais como o monopolista do setor.
Outro problema, não menos grave, é que a filtragem por meio de algoritmos ainda é muito imperfeita. A propriedade intelectual compreende exceções, como a remistura ou a paródia, por exemplo. Utilizar uma fotografia protegida por direitos de autor é proibido, mas usá-la para fazer uma paródia é permitido. E mesmo assim, dependerá daquilo que seja parodiado e da relação do original com a paródia. Tudo isto poderá ter que ser argumentado frente a um juiz, reunindo o testemunho de peritos face à letra da lei. Acontece que o algoritmo não recorre a relatórios periciais, avaliações subjetivas ou artimanhas legais. Por isso, a automatização do controlo dos direitos de autor acabará por se converter numa forma de censura que irá eliminar sistematicamente todos os conteúdos que possam eventualmente colidir com uma proteção e direitos de autor.
Este é apenas mais um episódio num caminho que coloca o reforço sistemático das normas de direitos de autor em colisão com as ferramentas tecnológicas e as praticas que precisamente desconstroem os conceitos tradicionais de autoria e controlo. Por isso, muitas vozes têm vindo a avisar que, pouco a pouco, estamos a mudar a natureza da internet e a eliminar o seu potencial para criar sociedades mais participativas, inovadores, criativas e democráticas. E estamos a fazê-lo, de uma forma subtil, em nome dos direitos de autor.
Um estudo mais detalhado sobre o problema do “value gap” e da filtragem por algoritmos editado pelo Observatório da Comunicação e Cultura da Fundação Alternativas.
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