“As ‘notícias falsas’ vão chegar a Portugal nas próximas eleições. É garantido.”

Novembro 16, 2018 • Jornalismo, Últimas • by

Conferência Fake News e Democracia

A 10ª Conferência Comunicação e Jornalismo da Universidade Lusófona – subordinada ao tema «‘Fake News’ e Democracia» – reuniu em Lisboa diretores de meios de comunicação social, jornalistas e académicos para debater um problema que está definitivamente na ordem do dia em Portugal. Os problemas que afetam o jornalismo e os jornalistas nesta era da ‘pós-verdade’ são muitos e diversificados, mas as soluções são poucas. Numa coisa todos os especialistas parecem estar de acordo: Portugal não está inume à ‘febre’ das ‘notícias falsas’ e as próximas eleições legislativas, em 2019, poderão ser a sua primeira grande manifestação em Portugal.

 

O que são afinal as ‘notícias falsas’?

ana pinto martinho, EJO

Ana Pinto Martinho, investigadora e editora do EJO, considera que os utilizadores também têm um papel a desempenhar na contenção das ‘notícias falsas’

Ana Pinto Martinho, editora do Observatório Europeu do Jornalismo em Portugal, investigadora assistente do CIES-IUL (ISCTE-IUL) e jornalista, sublinhou a importância de distinguir entre várias coisas quando falamos de ‘fake news’. Introduziu os conceitos de ‘misinformation’, ‘disinformation’ e ‘malinformation’, que infelizmente não têm uma tradução literal na língua portuguesa, mas que permitem distinguir aquilo que é falso porque resulta de um erro ou incorreção, daquilo que é falso e propositadamente criado com o objetivo de influenciar a opinião dos destinatários sobre um determinado tema.

O que os estudos relativos a Portugal nos indicam, segundo Ana Pinto Martinho, é que os portugueses estão, efetivamente, preocupados com as questões do que é verdadeiro ou falso na internet e olham com preocupação para o jornalismo de má qualidade. Para esta investigadora, há medidas que podem ser e estão a ser tomadas pelas instituições nacionais e europeias sobre esta matéria, mas ainda mais importante do que isso é que os utilizadores sejam capazes de assumir a sua quota-parte de responsabilidade no processo. Na última edição do livro “Os Elementos do Jornalismo”, uma obra seminal sobre o papel dos media, os seus autores Bill Kovach e Tom Rosenstiel juntaram um décimo elemento aos nove “elementos do jornalismo” originais: os cidadão também podem e devem participar nesse esforço de combate à desinformação, nomeadamente abstendo-se de criar informações falsas, verificando notícias que recebem e abstendo-se de partilhar aquilo que for duvidoso.

‘Grande poder traz grande responsabilidade’

Para João Garcia, jornalista e antigo diretor da revista Visão, um dos problemas é que as mentiras são sempre mais interessantes que a realidade e essa é uma das razões porque se propagam tão facilmente. Outro problema é que existe hoje uma menor disponibilidade das pessoas para receber informação credível. Em parte devido ao défice de atenção, as pessoas revelam menor interessem em participar na vida coletiva e em procurar informação fora das áreas específicas de interesse de cada um. Dantes também havia notícias falsas, mas ‘os mentirosos’ eram mais fáceis de apanhar e desmascarar. Hoje, isso é mais difícil.

Por isso mesmo, João Garcia aconselha os meios de comunicação social a não embarcarem na tentação de prestarem demasiada atenção às redes sociais, pois ao fazê-lo estão a legitimar uma ‘conversa de vizinhos’ – deu o exemplo da deputada fotografada a pintar as unhas no parlamento – que devia ficar fora do âmbito de atuação dos media sérios. Para este jornalista, a plataforma em que a informação circula não determina a sua credibilidade; o que determina a sua credibilidade é a qualidade e o processo de trabalho que produz essa qualidade. E é com isso que os media se devem preocupar.

Claro que a democratização do acesso à informação é em si mesma um facto positivo. Mas, alerta João Garcia, no quadro atual, em que os jornalistas perderam poder, é fácil passar daí à ‘popularização da informação’. Grande poder traz grande responsabilidade e o que se passa na internet é que em geral existe grande poder de comunicação, mas muito pouca responsabilidade, exceção feita aos órgão de comunicação social tradicionais. João Garcia advoga por isso um regresso à essência do jornalismo como forma de combater a desinformação e proteger o regime democrático.

 

‘Existe uma crise de valores, que é causa e consequência das notícias falsas’

Manuel Carvalho, diretor do Público, considera que boatos, mentiras e notícias falsas sempre houve. O que é novo é a escala industrial com que as tecnologias de informação e comunicação e os algoritmos permitem propagar e amplificar essas mentiras. Isso sim, é altamente preocupante e assustador para a democracia. Para Manuel Carvalho é inevitável que as notícias falsas cheguem em força a Portugal, provavelmente já nas próximas eleições legislativas. ‘Não nos iludamos quanto a isso’, afirma.

Por detrás deste problema está, segundo o diretor do Público, uma crise de valores e uma dissolução do nosso empenho coletivo nos processos democráticos que é tanto causa como consequência do que está a acontecer. Para este jornalista isso cria muitas vulnerabilidades no corpo social. Essa erosão da confiança leva a que as pessoas passem a acreditar nas suas próprias verdades e relativizem o papel dos órgãos de comunicação social. Esse é um grande desafio. Manuel Carvalho dá o exemplo dos Estados Unidos da América e considera ‘impensável’ que as pessoas sejam capazes de ‘eleger um idiota e aturá-lo durante tanto tempo’.

A ‘luz ao fundo do túnel’ pode ser a adesão aos modelos de subscrição dos órgãos de comunicação social. Manuel Carvalho destacou o facto de o New York Times ter chegado aos 3,8 milhões de subscritores e de o The Guardian ter mais de um milhão de contribuidores como notas positivas. Os media têm uma função social e valores profissionais de que não podem abdicar. O negócio dos media foi e continua a ser a verdade. E esse negócio, acredita Manuel Carvalho, continuará a ser rentável no futuro.

‘As redes sociais transformaram-se num espaço público de agressividade e cinismo’

Pedro Santos Guerreiro, diretor do Expresso, trouxe ao debate vários exemplos de notícias falsas que circulam sistematicamente acerca do seu jornal e que , por mais que o Expresso tente eliminá-las, subsistem e ressurgem de tempos a tempos. Ou seja, o problema não existe apenas nos EUA e é premente também em Portugal.
Para Pedro Santos Guerreiro, as notícias falsas podem ter dois objetivos diferentes: manipular as intenções políticas ou ganhar dinheiro com a exibição de banners publicitários. Mas também se nota que as redes sociais se têm vindo a tornar muito adversas ao jornalismo. Muitas vezes os meios que produzem e propagam notícias falsas cobrem-se com uma capa de suposta coragem porque, alegadamente, ‘dizem aquilo que os jornais não têm coragem de dizer’. Isso colhe bastante nas pessoas e contribui para voltar as redes sociais contra os jornais e os jornalistas.

No fundo, pergunta Pedro Santos Guerreiro, ‘a quem interessa que o contra-poder dos jornais seja fraco senão ao próprio poder?’ Ao denegrirem a imagem dos media e ao quebrarem a relação de confiança destes com os leitores, as redes sociais estão na prática a favorecer os poderes que os media têm por missão controlar e fiscalizar.

As redes sociais transformaram-se num espaço público de agressividade e cinismo onde grassam a manipulação e os valores anti-democráticos.

Com modelos de negócio deteriorados e enfrentando um ciclo informativo caótico e disperso, o que os media podem fazer é tentar ‘puxar’ os leitores para o seu terreno de eleição. Onde se reúne um ‘nicho’ de leitores que quer pensar pela sua própria cabeça e que acredita nos valores da democracia e no bem comum.

Para Pedro Santos Guerreiro deve ser feita pressão sobre o poder político para que assuma as suas responsabilidades nesta matéria. Mas não devem ser só os media a fazer essa pressão. A opinião pública também deve assumir a sua parte. Por exemplo, assinando os jornais. Os valores do jornalismo estão tão válidos hoje como no passado e por isso é essencial que os jornais possam continuar a fazer o seu trabalho.

Mas também Pedro Santos Guerreiro acaba numa nota positiva: hoje em dia torna-se tão evidente que as opiniões públicas estão a ser manipuladas que a preocupação deixa de ser apenas dos órgãos de comunicação e começa a ser também dos próprios cidadãos. Existe uma crescente perceção pública da importância do jornalismo e dos valores democráticos. ‘Não estamos estamos condenados à gestão do declínio’, conclui Pedro Santos Guerreiro.

‘Cuidado quando alguém diz que vos vai proteger das noticias falsas’!

Miguel Pinheiro, diretor do Observador, evocou Emir do Dubai para introduzir o tema das ‘fake news’. Quando as notícias falsas começaram a aparecer no Dubai, sobretudo relacionadas com a família real do emirado, o Emir anunciou que ia ser ele próprio a proteger os cidadãos dessas falsidades. Afinal, ironizou Miguel Pinheiro, ‘quem melhor que o Emir do Dubai para proteger os seus cidadãos’ das notícias falsas? ‘Tenham muito cuidado quando alguém diz que vos vai proteger das notícias falsas’ completou o diretor do Observador dirigindo-se diretamente à audiência. ‘Devemos ser nós próprios a tomar decisões’, reforçou. Para Miguel Pinheiro, o Estado não é árbitro da verdade, a não ser em regimes ditatoriais.

Claro que as notícias falsas são um problema, considera Miguel Pinheiro. Mas esse é um problema que já existe há vários séculos. O que mudou foi a forma de distribuição. Mas isso não nos deve levar a abrir a porta à regulação estatal do que é ou não é a verdade. Nos últimos anos, Putin comandou um exército de ‘fake news’ e, mais recentemente, o presidente dos EUA ‘inventou’ a tese de que os jornalistas é que fabricam as notícias falsas. ‘No fim’, antecipou Miguel Pinheiro, ‘eles vão acabar por fazer legislação para proteger as pessoas da criatura que eles próprios criaram’. A realidade, concluiu o diretor do Observador, voltando-se de novo para audiência, ‘o que eles estão a fazer é a lutar pela vossa cabeça e por qual é a verdade dentro da vossa cabeça!’

 

Legislação não é solução

Sobre a possibilidade de o parlamento português poder vir a legislar sobre as notícias falsas, que a investigadora Ana Pinto Martinho introduziu no debate, a generalidade dos presentes não se revelou partidária dessa solução. Para João Garcia, a profissão de jornalista já é uma das mais escrutinadas que existe. Primeiro pelos pares, depois pelos conselhos de redação, pelas instâncias deontológicas, pelos tribunais, etc. Não é preciso mais escrutínio. Qualquer que seja a solução para este problema – conclui – ela não vem de fora dos meios de comunicação social; têm que ser eles a ‘dar a volta’ à situação.

Para Miguel Pinheiro são os leitores que devem dar resposta à questão da regulação: se os jornais não fizerem bem o seu trabalho, os leitores fogem! Os leitores sempre foram, em última análise, os fiéis da balança. Mesmo que tudo o resto falhe, os leitores estão sempre atentos ao que os jornais e os jornalistas fazem. Para Miguel Pinheiro, isso é uma garantia de que alguma solução há-de ser encontrada.

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