Imprensa Livre na Islândia – Bom demais para ser verdade?

Outubro 12, 2016 • Liberdade de imprensa, Média e política, Últimas • by

O Primeiro Ministro da Islândia abandona uma entrevista na TV Sueca

O Primeiro Ministro da Islândia abandona uma entrevista na TV Sueca

Durante muito tempo, a Islândia foi vista como um brilhante exemplo de liberdade de imprensa – talvez bom demais para ser verdade. Mas mais recentemente, os políticos do país têm vindo a tentar influenciar os media. O exemplo mais recente veio mesmo do topo, quando Sigmundur David Gunnlaugsson, o Primeiro Ministro na altura, tentou abafar uma entrevista televisiva que questionava a sua participação numa empresa offshore no Panamá. A tentativa acabou por falhar e Gunnlaugsson viu-se forçado a apresentar demissão.

A entrevista, agora famosa, mostra um Gunnlaugsson a começar a gaguejar à medida que um jornalista sueco o vai questionando sobre a empresa offshore, Wintris. Pouco depois sai da sala, negando todas as acusações. Para piorar ainda mais as coisas, o assistente de Gunnlaugsson liga ao canal de televisão sueco na tentativa de impedir que a entrevista fosse emitida.

Os políticos e o serviço público de televisão da Islândia

A tentativa de interferência de Gunnlaugsson não é inédita entre os políticos islandeses: são já muitas as queixas apresentadas no Parlamento contra as pressões exercidas sobre a RUV, o serviço público de televisão do país. Em Agosto de 2013, Vigdis Hauksdóttir, um membro do Partido Progressivo de Gunnlaugsson e presidente da Comissão de Orçamento do Parlamento, formulou uma ameaça velada. “Acho que o montante de verbas destinado à RUV não é normal. Especialmente porque o trabalho noticioso nem é o melhor…” disse ele. Meses mais tarde, em dezembro de 2013, o orçamento da RUV, que é diretamente controlado pelo Governo, acabaria por ser reduzido em 20%.

O corte no orçamento foi alvo de queixas por parte da European Broadcasting Union (EBU) e obrigou a RUV a cortar programas e reduzir pessoal, por exemplo, reduzindo a zero a já frágil rede de correspondentes no estrangeiro. O canal prevê fazer ainda mais cortes ao seu serviço, no futuro próximo.

Valgerdur Anna Jóhannsdóttir, uma académica na área dos media da Universidade da Islândia, afirmou estar convencida de que “a crítica constante tem, no mínimo, um potencial efeito dissuasor sobre os jornalistas”. Ela acredita estar muito mais curta a distância que separa os políticos do serviço público de televisão, tanto na Islândia como noutros países nórdicos.

Empresas de media privadas: porta-vozes do poder

Muitas das empresas de media privadas estabelecidas na Islândia são detidas e editadas por políticos ou importantes personalidades do mundo dos negócios e são acusadas de estarem ao serviço de interesses particulares. Como resultado, a confiança do público nos media tem vindo a decrescer significativamente nos anos mais recentes.

O rival mais antigo da RUV é o jornal diário Morgunbladid. Muitas vezes acusado de parcialidade pelos críticos, o jornal pode ser visto como um exemplo quer dos problemas da sociedade islandesa no geral quer do cenário dos media em particular. Os investidores do Morgunbladid são oriundos da indústria das pescas do país. E temem que um governo reformista possa pôr em causa a sua riqueza, ao impor sistemas de quotas. “Esta atitude é evidente em todos os artigos nele publicados,” segundo Jóhannsdóttir.

O director do jornal, David Oddsson, é uma personalidade altamente controversa. Oddsson, um membro do Partido da Independência, foi Primeiro Ministro entre 1991 e 2003, tendo uma breve passagem como Ministro dos Negócios Estrangeiros antes de ter assumido o cargo de diretor do Banco Central em 2005. Foi durante o seu mandato como Primeiro Ministro que se deu a privatização do sistema bancário que, de certa forma, lançou as bases para a bolha financeira. Os críticos dizem que a sua principal missão, como líder do Banco Central, era evitar a explosão da bolha, missão que ele falhou.

Oddsson integrou a lista das “25 Pessoas Responsáveis pela Crise Financeira”, publicada pela TIME Magazine. Não deixa de ser profundamente problemático o facto de ele se ter tornado numa das personalidades mais poderosas nos media da Islândia depois de todo este percurso. Durante anos, ele usou o jornal para re-escrever a história. “A sua versão dos acontecimentos teve grande cobertura no seu jornal,” afirma Jóhannsdóttir. Oddsson candidatou-se a presidente em meados deste ano [Junho de 2016] e durante a sua campanha o jornal liderado por ele, e seu apoiante, foi distribuído gratuitamente. No entanto, com uma votação inferior a 14%, acabou por ficar em quatro lugar nas votações.

A confiança nos media da Islândia está a diminuir

Segundo uma sondagem conduzida pela empresa de sondagens MMR, a confiança nos media estabelecidos da Islândia está em declínio desde a crise financeira de 2008. O Morgunbladid tem protagonizado uma das maiores quedas. Se no final de 2008 uma fatia de 60% dos seus leitores declaravam ter confiança no jornal, já em 2014 apenas 40 por cento ainda confiava nele (não há disponíveis dados mais recentes). A RUV perdeu sete por cento no mesmo período de tempo, passando de 77% para 70%.

Outro grande player é o grupo de media privado 365, com os seus jornais, TV e estações de rádio. O grupo é controlado por Ingibjörg Pálmadóttir. Até à crise financeira, Pálmadóttir e o seu marido, o investidor Jón Ásgeir Jóhannesson, estavam entre os principais investidores da Islândia. Jóhannesson detinha participação accionista no banco Glitnir e expandiu-se através de aquisições no exterior (ex. House of Fraser, Karen Millen). Em 2002, o grupo de media 365 assumiu o control do jornal Fréttabladid, um tabloid diário e gratuito que tem a maior circulação na Islândia. Isto tornou Jóhannesson no homem mais poderoso da Islândia, de acordo com o professor de política e confidente de Oddsson, Hannes Hólmsteinn Gissuarsson. O tabloid DV é agora propriedade de Björn Ingi Hrafnsson, um antigo membro do Partido Progressivo (atualmente numa coligação governamental com o Partido da Independência de Oddsson).

Além das grandes empresas de media, também existem alguns pequenos órgãos de comunicação social online. Websites como Kjarninn.is, Stundin.is e Kvennabladid.is operam de forma mais independente do que os grandes media comerciais. O seu alcance é menor mas ainda goza de algum destaque – sobretudo porque a utilização da Internet na Islândia é muito comum, incluindo entre a população mais idosa.

O papel dos media estrangeiros

A entrevista sobre as contas no Panamá que forçou o Primeiro Ministro à demissão foi gravada para a televisão sueca SVT e foi baseada na investigação para o grupo internacional Panama Papers. Mesmo antes da entrevista ser emitida, a mulher do Primeiro Ministro, Anna Sigurlaug Pálsdóttir, admitiu a existência de tais contas em offshore. Mas foi quando a imprensa internacional começou a dar cobertura à história que o tema se transformou num grande escândalo.

Ainda que a imprensa estrangeira possa funcionar como um “regulador”, um dos problemas é que muitas histórias sobre a Islândia publicadas nos media internacionais são superficiais e estereotipados, com histórias sobre porta-vozes dos elfos a terem mais hits e tráfego que outras histórias de investigação. Isto também se deve, provavelmente, ao facto de apenas alguns jornalistas estrangeiros conhecerem realmente a Islândia e terem uma forte rede no país.

Ranking da imprensa

Políticos poderosos, interesses de negócio e cortes no financiamento público. Todos estes fatores têm ajudado a manchar a imagem intocada da Islândia. Daí que não seja surpresa o facto de a Islândia ter caído, para baixo de outros países, no Freedom of the Press Ranking publicado pela Repórteres sem Fronteiras. Em contraste com países como a Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, que surgem no topo do ranking a par da Alemanha e um punhado de outros países, a Islândia é colocada na categoria seguinte, classificada como “satisfatória”. Uma categoria partilhada por países como os Estados Unidos, África do Sul, Polónia, Roménia e França.

Quem dedique um olhar mais atento ao cenário dos media na Islândia poderá questionar se a situação é realmente “satisfatória” ou se a situação será um pouco mais complicada do que a descrita pelos Repórteres sem Fronteiras.

Imagem: screen shot, SVT e Reykjavick Media / Guardian website
Autor da Foto: Kristian Ridder-Nielsen

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