Em quem acreditar? A crise de credibilidade dos media europeus

Novembro 2, 2015 • Média e política, Últimas • by

Recuemos ao dia 3 de dezembro de 2013: Alan Rusbridger, chefe de redação do The Guardian, testemunha perante o Comité de Assuntos Internos da Casa dos Comuns. Um interrogatório tenso de 78 minutos sobre a decisão do seu jornal tornar público documentos secretos da NSA revelados pelo «whistleblower» Edward Snowden.

Rusbridger falou em voz baixa. Apesar de confuso em algumas fases do interrogatório, a sua mensagem foi cristalina: Os jornalistas do The Guardian tinham verificado escrupulosamente o material confidencial que lhes tinha sido fornecido por Snowden. Cobriram a negro todos os nomes constantes nos documentos e recorreram ao aconselhamento de especialistas. Só depois de tomadas estas precauções é que o jornal publicou as histórias – não contra a democracia, mas para a promover. Num paìs democrático com liberdade de imprensa os jornalistas têm a obrigação de revelar tais práticas sinistras a bem do interesse público, afirmou ele. Os interrogadores do Comité não apresentaram quaisquer contra-argumentos convincentes.

Na altura, há dois anos, o The Guardian tinha publicado várias reportagens de investigação que beneficiaram bastante a reputação do jornal. No ano das revelações de Snowden, a população britânica considerava o The Guardian como «o mais reputado, preciso e fiável jornal do Reino Unido».

Esta é a boa notícia. A notícia menos boa é: até mesmo o The Guardian está a perder leitores. O jornal, tal como o seu website, estão a funcionar em prejuizo, e um prejuizo crescente. Os feitos dos jornalistas do The Guardian só são possíveis porque a proprietária do jornal – a Scott Trust Foundation – está a injetar cerca de 50 milhões de libras anuais para suportar a sua débil situação financeira. Em que outro sítio do mundo poderia isto acontecer?

O Jornalismo na Europa Ocidental: A crise de credibilidade

Sem dúvida, o quadro mais amplo do jornalismo na Europa revela um cenário bastante desolador: o jornalismo na Europa Ocidental está a sofrer de uma «crise de credibilidade». Neste artigo, apresento cinco teses sobre este fenómeno.

Tese 1: O declínio na capacidade de investigação

O que torna o jornalismo credível? Todos conhecemos o critério, mesmo que só por intuição: tem de ser independente, e exige investigação persistente, profissional e – em relação às pessoas afetadas – responsável. O jornalismo credível não é de graça. Quando as editoras veêm os seus lucros a cair, tratam de encurtar as rédeas dos seus jornalistas. Na Alemanha, quase todas redações estão a cortar pessoal. Nos jornais diários, poucos editores têm de produzir muito mais material. A maior parte deles não consegue mesmo responder por aquilo que publicam, porque não sabem se é verdade ou não. E é por isso que preferem publicar versões oficiais.

Tese 2: A falta de profissionais

Isto leva-me à minha segunda tese, que se prende com o profissionalismo nas organizações de media. Na Alemanha existem muitas redações onde os editores mais novos em particular não têm a menos ideia do que significa realmente o jornalismo de investigação. Fazem uma pesquisa no Google, clicam nos primeiros cinco resultados e acham que estão a fazer «investigação». A verificação das fontes, pesquisa ativa de informadores, ou a interrogação investigativa têm-se tornado exceções raras. Muitas redações publicam apenas o que é fornecido pelas agências de marketing, da política e pelos spin-doctors corporativos. Eles nem se apercebem de que estão a fazer relações públicas em vez de jornalismo. No entanto, os grupos de leitores mais exigentes e a audiência mais inteligente percebem. Eles já não levam a sério este tipo de jornalismo – e a espiral descendente acelera.

Tese 3: A corrida pelas receitas publicitárias

Agora chego à minha terceira tese, relacionada com a indústria dos media. Considerem os media online. Estes meios abriram mão de todos os seus conteúdos jornalísticos de graça. Consequentemente, rec isam de «alcance» que lhes permita gerar mais receita da publicidade. Eles são orientados por elevados números de cliques, visualizações de página e conteúdo único. Na concorrência pela atenção dos leitores todos tentam ser mais rápidos e apelativos do que os outros. Exemplos destes desenvolvimentos são o Buzzfeed e, na Alemanha, o blogue «heftig.de». Em traços gerais, são publicadas «sensações» irrelevantes com a única intenção de produzir cliques dos utilizadores.

Subsequentemente, os dados de perfis podem ser recolhidos e vendidos a empresas de publicidade. Esta tendência está a alargar-se ao jornalismo também. Muitos sites de notícias de grande alcance publicam itens de notícias triviais e defendem estar a fazer jornalismo. Estamos a produzir uma nova geração de pessoas que acreditam que o jornalismo não é mais do que gerar entretenimento «cool» não-ficcional.

Tese 4: Muita Opinião; Poucos factos

É aqui que a minha quarta tese se resume. É sobre a elite dos media, os denominados líderes de opinião. Os maiores media de qualidade reconhecem que não estão a conseguir alcançar a audiência mais jovem. Em particular os jovens adultos com maior formação procuram notícias no Facebook, no Google ou noutros agregadores. Na minha opinião, é trágico que os principais media estejam a tirar conclusões erradas destas tendências.

Independentemento do meio de informação, seja Bild-Zeitung, Der Spiegel, Frankfurter Allgemeine, Sueddeutsche ou um dos jornais regionais: qualquer acontecimento no mundo é imediatamente embrulhado em opiniões fascinantes que explicam as causas. Obviamente, os chefes de redação sentem que têm de fornecer instantaneamente interpretações e opiniões sobre os eventos em curso, mesmo quando os factos ainda são contraditórios e estão longe de ser claros. Alguns exemplos bem conhecidos são a crise na Ucrânia, o desastre da Germanwings, o conflito do Iraque e, mais recentemente, o fluxo dos refugiados acompanhado da Nova Expressão Germânica «Willkommenskultur».

Aparentemente, muitas equipas de redação esqueceram o seu princípio basilar, que diz que «o comentário é gratuito, mas os factos são sagrados». E em primeiro lugar temos de conhecer os factos… A propósito, foi Charles Prestwich Scott, o famoso chefe de redação do The Guardian no século XIX, que celebrizou esta frase. A confiança que o The Guardian amealha hoje em dia ainda tem o seu cunho.

Nos nossos dias, muitas pessoas não confiam nos media porque não recebem suficiente informação neutra. Em vez disso, acabam por ler demasiados comentários e opinião. Aqueles que têm opiniões políticas completamente diferentes da élite de jornalistas, acabam por ser particularmente aborrecidos.

Tese 5: O conteúdo noticioso tornou-se «mainstream»

Muito frequentemente, todos os principais meios de informação publicam interpretações mais ou menos idênticas em linha com o que consideram desejável em termos políticos, económicos e culturais. Acabam por se reforçar uns aos outros. Quer seja na escolha dos tópicos, nos destaques, nos editoriais e entrevistas especializadas, em discussões de talk show ou emissões televisivas – encontramos quase sempre o mesmo material mainstream. Isto tem a ver com a cultura política da Alemanha.

Não é a primeira vez que a Alemanha é comandada por uma grande coligação. As linhas que separam as posições entre a esquerda liberal e a direita conservadora estão esbatidas; o debate em torno dos princípios políticos básicos está ausente. Em consequência, para os grupos marginalizados a perspetiva dos media mainstream soa a arrogante – em particular para aqueles que se sentem derrotados no processo de mudança social. Os media mainstream não discutem ou refletem as suas necessidades, mágoas ou receios.

Por agora, a lacuna entre o mainstream presunçoso e os grupos marginais da sociedade tem-se acentuado. Para muitos, os media mainstream têm-se tornado meros porta-vozes do «sistema» – e é por isso que os apelidam de «Systemmedien» (media do sistema) e se mostram contra a «Lügenpresse» (imprensa de mentira).

Volkswagen e afins: O que fazer com o jornalismo confuso?

Um exemplo a que gostaria de fazer uma breve referência antes de terminar é o caso Dieselgate do grupo Volkswagen (VW).

Desde 2012, já era do conhecimento dos especialistas do setor automóvel que alguma coisa errada se passava com os valores de emissão dos motores a diesel da VW. Em junho de 2014, um instituto de investigação ecológica independente de Berlim, International Council for Clean Transportation (ICCT), informava o público alemão que os valores de emissão de gases dos motores a diesel da VW excediam largamente os limites legais, e garantia que as autoridades tinham sido enganadas. No final de setembro de 2014, 43 sites noticiosos alemãos publicaram um artigo baseado no mesmo press release. O Spiegel online optou por um título bastante inofensivo: «Empresas automóveis enganam nos testes de emissão» (Autobauer schummeln bei Angabe von Abgaswerten). E assim terminou tudo. Nem uma única organização de media ou agência de notícias pegou no assunto para o investigar. Seria de questionar porque razão estes grandes meios de informação simplesmente ignoraram o assunto? Sagrados não são os factos, mas sim os carros…

Dez meses passados, e com base nos dados do ICCT, as autoridades dos EUA tomaram medidas contra a VW. Desde então, os principais media alemães tentam ultrapassar-se uns aos outros com comentários espirituosos sobre o grande desastre da capacidade da engenharia alemã.

Questiono-me: Como teria o The Guardian tratado uma situação como esta, caso acontecesse na Grã Bretanha? Estou preocupado porque os colegas britânicos confessam-me a sensação de ver a credibilidade do The Guardian também em declínio.

O que fazer com este jornalismo confuso?

Este artigo é bsseado numa intervenção na conferência European Centre for Press and Media Freedom em 2015.

Crédito da imagem: Flickr Creative Commons: Kate Ter Haar

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