O calão tem-se tornado cada vez mais aceitável socialmente, mesmo na América mais puritana. Dean Baquet, Executive Editor do The New York Times, chamou recentemente «cara de cú» a um professor de jornalismo que o tinha criticado pela cobertura jornalistica aos acontecimentos no Charlie Ebdo. Jacob Harris, que até há pouco tempo era arquitecto de software do the New York Times, descreveu sucintamente como o equilibrio de poderes entre as relações públicas (RP) e o jornalismo está a mudar. Numa contribuição para o Nieman Journalism Lab, Harris afirma que «a onda de informação rasca está a crescer e agora chegou a nossa vez de descobrir como não sermos varridos por ela».
Estatísticas recentes do Departamento de Trabalho do Governo norte-americano revelam que atualmente nos EUA o número de especialistas em RP é quase cinco vezes superior ao número de jornalistas. Harris dá alguns exemplos que demonstram como os profissionais de RP estão a fazer o «bypass» às redações e a difundir as suas histórias pelos seus próprios meios de forma viral nas redes sociais.
Dois destes exemplos são particularmente impressionantes e algo depravados: Os democratas «vêm mais pornografia do que os republicanos,» de acordo com o portal pornográfico Pornhub; e «Os mexicanos e os nigerianos são melhores no sexo», com base numa sondagem conduzida por um fabricante de preservativos.
Para Harris, estes são exemplos de «jornalismo de dados» produzidos pelas agências RP para as empresas clientes que querem atrair a atenção do público e obter a cobertura meios de informação online, que agarram nestas histórias sem qualquer hesitação. «Se fores um reporter de uma start-up noticiosa que tem de alimentar constantemente um fluxo de notícias com novo material, porque é que não haverias de pegar numa destas histórias? Todos ficam contentes, mesmo que os dados não sejam verídicos», afirma Harris.
A dependência das RP em relação ao jornalismo está a diminuir, ao mesmo tempo que a dependência do jornalismo em relação às RP está a aumentar
O Reuters Institute for the Study of Journalism (RISJ), da Universidade de Oxford, conduziu recentemente um estudo aprofundado sobre o relacionamento entre os agentes de RP e o jornalismo. John Lloyd, Investigador Senior da RISJ, e Laura Toogood, uma especialista de RP sediada em Londres, partilham a autoria do relatório: Journalism and PR. Eles resumiram os resultados nestes termos: a dependência das RP em relação ao jornalismo está a diminuir, ao mesmo tempo que a dependência do jornalismo em relação às RP está a aumentar. «As RP ainda precisam do jornalismo, que tem funcionado sempre como um «aval de terceiros» à mensagem que se quer passar», concluíram. «Mas agora têm à sua disposição outros aliados que, em muitos casos, são mais poderosos».
Para examinar a forma como o relacionamento entre o jornalismo e as RP tem vindo a mudar na era digital do «qualquer coisa serve», Lloyd e Toogood entrevistaram 40 especialistas de comunicação e jornalistas do hemisfério anglo-saxónico. O resultado é algo que pode não passar no processo de mediação na publicação de artigos das publicações científicas mas é, no entanto, mais útil do que a maior parte dos estudos «empíricos» publicados por estas publicações. Em vez de recolherem os dados de forma cega e apresentá-los em gráficos de barras previsíveis, os autores condensaram os resultados das suas entrevistas sob uma perspectiva excitante que demonstra na perfeição como os estrategas de RP estão a exercer a sua influência.
Os motores de busca e as redes sociais permitem aos especialistas de RP comunicar diretamente com os seus grupos alvo
De acordo com as suas análises, os motores de busca e as redes sociais em particular têm-se transformado em poderosas ferramentas de comunicação. Estas ferramentas dão às empresas, às agências governamentais e às organizações sem fins lucrativos a possibilidade de fazer o bypass aos jornalistas e comunicar diretamente com os seus grupos alvo.
Como é que isto está a acontecer, e de que forma empresas como o Google, Facebook, Twitter e Instagram estão a gerar lucros, são os tópicos abordados em detalhe por Toogood no quarto capítulo do livro. Não se trata de um «guia prático» para especialistas RP que ainda procuram o seu caminho no mundo digital. No entanto, a análise de Toogood pode revelar um cenário algo sinistro para todos os que se preocupam com o futuro das nossas sociedades democráticas.
Se as elites mais poderosas conseguem explorar estrategicamente os seus subalternos, incluindo os seus «trolls», e se os jornalistas têm cada vez menos condições para verificar a veracidade das mensagens que circulam na internet, isso poderá fazer emergir cada vez mais universos paralelos – e comunidades bizarras no Facebook.
A propaganda difunde-se rapidamente através das redes sociais
O discurso deliberativo e racional, baseado nos factos, está a perder terreno, segundo um recente estudo italiano. Os invetigadores de media na Itália analisaram como as teorias «nonsense» (absurdas) e da conspiração se estão a propagar em redes sociais, como o Facebook, face à circulação de informação séria sustentada por cientistas e jornalistas profissionais.
Uma equipa de investigadores que trabalham com Walter Quattrochiocchi (Institute for Advanced Study, Lucca) dedicou-se a examinar um universo de 270 mil posts em 73 páginas Facebook. O resultado revela que os investigadores e jornalistas que tentam comunicar a verdade não têm qualquer hipótese face aos seus adversários. O absurdo é pura e simplesmente “gostado” e “partilhado” com uma frequência e intensidade muito maior do que a informação séria e idónea.
Como é que os jornalistas e os especialistas em RP se vêem a si próprios e aos outros?
Estarão os jornalistas e os especialistas RP conscientes da mudança que a digitalização está a provocar na relação de poderes entre as duas profissões? Thomas Koch, Magdalena Obermaier e Claudia Riesmeyer (da Universidade de Munique) apresentaram recentemente um estudo que analisa ambas as profissões em países de língua germânica.
Os resultados não são de tirar o fôlego, mas dão uma ideia surpreendente do quanto a percepção mútua está a divergir. Apenas um quarto dos jornalistas considera ter um relacionamento «próximo» com os profissionais de RP e quase 40% define este relacionamento como «confiável». Já no sentido inverso, as percentagens de especialistas RP que encaram o seu relacionamento com os jornalistas da mesma forma quase que duplica.
Quase 50% dos especialistas de RP acreditam (realisticamente…) ter uma forte influência sobre o trabalho jornalístico, ao passo que apenas 20% dos jornalistas estão dispostos a admiti-lo. Menos de um terço dos jornalistas sondados concordaram que o seu trabalho seria «muito mais difícil» sem o material disponibilizado pelos agentes de RP, sendo esta perceção confirmada por uma grande maioria de dois terços dos profissionais de RP.
Outro livro, da autoria de um antigo diretor de comunicação corporativa da Porsche, Anton Hunger, encaixa na perfeição neste debate. Hunger, um poderoso e eloquente especialista de comunicação do mundo germânico, dedicou anos a analisar o setor das RP e a sua influência no jornalismo (como colunista da conhecida revista profissional Medium-Magazin).
Segundo Hunger, «o cerne do trabalho de RP» prende-se com o facto de «quem contacta profissionalmente os assessores de imprensa não gostar de sofrer qualquer interferência» – uma observação em linha com os resultados da investigação de Munique.
Os assessores de imprensa também têm um papel de serviço público
Segundo Hunger, os jornalistas «são os heróis do quarto poder, sucumbem à ilusão da iluminação sem preconceitos e ignoram deliberadamente a sua própria sobre-valorização da auto-estima neste negócio». Do outro lado, ainda segundo Hunger, os assessores de imprensa também têm um «compromisso de serviço público»: «Eles têm de publicar os maus números … tal como os bons, os despedimentos e também as contratações, as derrotas assim como os sucessos». No entanto, eles auferem os seus «salários opulentos» sobretudo para «tornar os seus clientes fantásticos aos olhos do público» e para «explorar o pack dos media».
É difícil imaginar tal sabedoria a ser apresentada de forma mais agradável e frontal. De igual modo, e com uma franqueza surpreendente, Hunger aborda os limites de RP de crise. «Quem é “escandalizado” pelos media não pode esperar grande ajuda», afirma. «O suspeito está nu, o óculo no peepshow está aberto, e o spin doctor que é suposto proteger o suspeito é afinal um tigre sem dentes». Aqueles que têm sido vilipendiados pelos media, como o político suiço Geri Müller e o anterior presidente do Swiss National Bank, Philipp Hildebrand, podem servir de testemunhos recentes nesse sentido.
Deveriam os profissionais de RP ser alvo de julgamento moral? Deveriam os jornalistas ser mais transparentes?
No entanto, ocasionalmente até mesmo Hunger pode errar. Para ele, os especialistas em RP podem ser, coletivamente, descritos como «spin doctors», defendendo cinicamente que as suas acções não deveriam levantar questões morais – da mesma forma que «o comportamento das agências de rating e dos bancos não pode ser julgado moralmente». E não vê necessidade de haver transparência sobre quem financia as viagens de luxo a jornalistas, porque os jornalistas «corruptos» serão «corruptos de qualquer forma, com ou sem regras de transparência».
Também me questionei porque razão Hunger dedicou anos a analisar e a comentar as mudanças no relacionamento entre os jornalistas e os especialistas RP, sem nunca ter aparentemente tido em conta as investigações relevantes.
Os investigadores dedicados ao jornalismo e às relações públicas mereceriam um comentário temperado de um profissional RP que conhece todos os truques, que escalou todas as etapas do glamour da indústria e que conhece bem «o outro lado da mesa». (Hunger trabalhou como jornalista de negócios antes de entrar no mundo da comunicação corporativa.)
Uma excursão ocasional pelo universo paralelo da investigação poderia ser uma grande ajuda mesmo para os profissionais do calibre de Hunger. Chegando lá, poderiam ganhar “privatissime et gratis” uma perspetiva adicional sobre o relacionamento entre as duas profissões nesta «economia da atenção», um relacionamento que é complexo, em mudança, parcialmente simbiótico e parcialmente antagónico.
Anton Hunger (2014), Die Wahrheit liegt auf dem Platz. Journalisten und PR-Leute inszenieren gemeinsam die mediale Welt – auch wenn sie ihre gegenseitige Abneigung lustvoll pflegen, Salzburg: Edition Oberauer
Thomas Koch, Magdalena Obermaier, Claudia Riesmeyer (2014): Friend or Foe or In-between? A Quantitative Survey on the Relationship between Journalists and Public Relations Practitioners in Germany, Presentation, Lisbon: ECREA Conference, November
Este artigo foi inicialmente publicado em NZZ 30 Junho 2015, em alemão. O presente artigo foi traduzido do inglês.
Crédito da Foto: Flickr Creative Commons: Niuton may
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