O primeiro dia do ano de 2015 trouxe uma pesarosa notícia ao universo das Ciências Sociais e ao mundo. Ulrich Beck, sociólogo alemão, que em 1986 ganharia notoriedade com a sua obra Sociedade de Risco: Rumo a uma Nova Modernidade, falecia aos 70 anos, vítima de ataque cardíaco.
A escassos dias deste primeiro acontecimento relatado, um outro, com uma amplitude descomunalmente distinta, viria a abalar radicalmente o mundo e trazer à discussão, junto à opinião pública, os fundamentos contemporâneos das liberdades, sejam elas de expressão, jornalísticas ou religiosas. Refiro-me ao atentado ocorrido a 7 de janeiro de 2015, à publicação satírica francesa Charlie Hebdo, que culminou com a morte de 17 pessoas.
Após o atentado uma imediata análise, efetuada por múltiplos analistas, estudiosos e comentadores, numa por vezes confusa amálgama de opiniões, evidenciou, na minha ideia, a falta de uma crítica elucidada. Menciono Ulrich Beck, ao momento falecido há 7 dias, e a sua contextualização e possível decomposição do acontecimento, no proclamado país berço das liberdades – França, e uma associação à por si denominada Sociedade de Risco. Um pensamento recorrente percorreria a minha mente, durante dias, na análise ao atentado ao Charlie Hebdo – O que pensaria, como analisaria Beck o acontecimento, à luz da sua Sociedade de Risco?
Beck, em 2002, em The Terrorist Threat – World Risk Society Revisited, defende que os atentados de 11 de setembro de 2001 levaram a um completo colapso na linguagem, como a conhecíamos até então. Sustenta que desde aquele momento, desde a implosão das torres gémeas, que o entendimento de conceitos como – segurança, terrorismo ou guerra – mudaram radicalmente. Estes atentados expressam, também de forma simbólica, e são ponto fundamental no século XXI, na definição da nossa sociedade como uma Sociedade de Risco.
Esta mesma análise de Beck, associando o 11 de Setembro de 2001 à atual Sociedade de Risco, com base na ameaça terrorista, conduziu à minha inicial interrogação, insatisfeita por motivos óbvios, de descortinar a opinião de Beck perante as consequências do atentado ao Charlie Hebdo.
Neste meu exercício empírico meditativo (que levou ao presente texto), acabei por ir mais longe nas minhas considerações e a incluir um outro conceito à reflexão, o de Pânico Moral, de um outro sociólogo, Stanley Cohen. Este autor, na sua obra Folk Devils and Moral Panics (1972) introduz o Pânico Moral como um sentimento intenso, expresso numa população sobre um qualquer tema que pareça ameaçar a ordem social. Mais tarde, em 2004, os autores Dawn Rothe e Stephen Muzzatti, tecem considerações específicas acerca do conceito de Pânico Moral, resultante do terrorismo, na sociedade norte-americana. Os dois autores sustentam, em Enemies Everywhere: Terrorism, Moral Panic, and US Civil Society, que a sociedade atual tem sido inundada de informações, imagens e depoimentos distorcidos e exagerados, difundidos pelos media e pela classe política, capazes de fomentar o Pânico Moral e um sentimento de insegurança e medo generalizado, a um nível planetário.
Recentemente, teria eu próprio, em O Novo Paradigma da Vigilância na Sociedade Contemporânea – “Who Watches the Watchers” (2014) , identificado os dois conceitos referidos, realizando a seguinte associação:
“A Sociedade de Risco em que vivemos atualmente, alimentada por um Pânico Moral dirigido à população pela classe política e pelos media, leva à proliferação e legitima a supervisão e o controlo, por parte do Estado”.
É neste encadeamento reflexivo que surge este exercício, onde se pretende associar um Pânico Moral espoletado pelo fenómeno Charlie Hebdo, sustentador de um novo capítulo da atual Sociedade de Risco. Agora, já sem Ulrich Beck, arriscam-se possíveis cenários. Nos EUA, o USA Patriot Act: Lei de 2001 para unir e fortalecer a América, fornecendo instrumentos apropriados requeridos para intercetar e obstruir o terrorismo tornara-se decreto pela mão do presidente George W. Bush em 26 de outubro de 2001. Assim, apenas 46 dias foram suficientes para validar pelo congresso norte-americano uma lei considerada por muito controversa, entre outros fatores pela viabilização e incentivo da vigilância, sob várias formas, de indivíduos suspeitos de conspiração terrorista.
Arrisco e tomo a liberdade de conjeturar, com toda a humildade possível, uma eventual análise de Ulrich Beck à luz dos acontecimentos recentes, após o atentado ao Charlie Hebdo.
A par do que foi uma realidade nos EUA, com a aplicabilidade do já referido USA Patriot Act, também na União Europeia (UE) serão tomadas medidas fortes de luta para combater o terrorismo.
De imediato voltaram à mesa de discussão, no Parlamento Europeu, as questões relacionadas com a aplicabilidade de Acordos como o Passenger Name Record (PNR), em vigor nos EUA após o 11 de setembro de 2001 e proposto no Tratado de Lisboa em 2007 para o espaço europeu. O procedimento para fins comerciais já era efetivado pelas companhias aéreas antes do ano de 2001, onde eram recolhidos, guardados e analisados os dados dos passageiros. A controvérsia associada ao PNR sugere que, medidas antiterroristas como a referente a este Acordo, poderão por em causa liberdades individuais democráticas.
Recentemente, o primeiro ministro francês Manuel Valls, apresentou ao parlamento um projeto de lei, que segundo as suas palavras, visa combater o terrorismo, contudo respeitar as liberdades individuais. A controvérsia surge quando, organizações de direitos humanos condenam o projeto de lei apresentado, por permitir às autoridades vigiar comunicações digitais e telefónicas dos cidadãos, perante o pretexto de ameaça terrorista, sem autorização judicial.
Em suma, o atentado ao Charlie Hebdo derivou no fenómeno Charlie Hebdo. Por todo o mundo se discutiram as tais liberdades, referidas no início do texto, se sentenciaram culpados e se proferiram penas. Da discussão, envolvendo a opinião pública, faltou o tema das consequências do atentado. Hoje, indiferentes, apáticos e acríticos, negligenciamos um direito paralelo à liberdade, o direito à proteção da privacidade.
O Pânico Moral (com base na desinformação) incutido pelos media e classe política resulta de receios descabidos e desmesurados, que viabilizam medidas, como por exemplo, a vigilância massificada de cidadãos, que põe em causa direitos democráticos, e tornam a nossa uma sempre emergente Sociedade de Risco.
Fotografia: Gonzalo Fuentes