O papel dos ‘whistleblowers’ na ‘sociedade de dados’

Abril 24, 2019 • Jornalismo • by

Imagem: Chatham House / Flickr | License: CC BY-SA 2.0

Durante os últimos 10 anos, a ação dos “whistleblowers” assumiu um papel de relevo como agentes de mudança nas sociedades democráticas. Casos como os da Wikileaks, de Edward Snowded ou da Cambridge Analytica não só confirmaram o papel central desempenhado pelos jornalistas e pelas suas fontes como também contribuíram para conhecermos melhor e mais profundamente algumas das questões prementes que afetam a ‘sociedade de dados’ em que vivemos submergidos.

Embora existam diferenças significativas entre eles, tanto o caso de Edward Snowden como o da Cambridge Analytica geraram um manancial de informação que nos permite estudar mais em pormenor a forma como se estabelecem as interligações entre a política e as tecnologias numa sociedade em que uma boa parte do poder reside em ambos esses campos. Através da exposição da maior ação de vigilância massiva da história e da denúncia de um fenómeno de apropriação indevida de dados em larga escala, esses dois casos desencadearam uma discussão global acerca da política, das plataformas tecnológicas e, finalmente, do interesse público.

Num plano ainda mais abrangente, estes casos também nos obrigaram a refletir sobre as consequências da ‘sociedade de dados’ e no papel que eles crescentemente têm na cidadania, nos direitos dos cidadãos, na propaganda política e, em última análise, naquilo a que Soshanna Zuboff chama ‘surveillance capitalism’ ou ‘capitalismo da vigilância’. Este conceito refere-se a um modelo económico baseado na recolha e análise de dados em larga escala, possível graças aos sistemas de publicidade direcionada que se tornaram o modelo de negócio preferencial da maioria dos serviços online.

O último recurso

Um elemento essencial dos casos Snowden e Cambridge Analytica é que – no seguimento do que já tinha acontecido com o caso Wikileaks em 2010 – eles resultaram das revelações de denunciantes sobre más práticas de interesse público e da sua colaboração com os jornalistas e com as instituições do jornalismo.

Obviamente, os episódios de denúncias e de fornecimento de dados para os meios de comunicação social numa escala tão vasta e tão abrangente não acontecem todos os dias. Mas quando acontecem, provocam mudanças radicais em vários campos. Os jornalistas de investigação recorrem com frequência ao contributo de denunciantes, mas isso não nos deve fazer esquecer que quem opta por esse caminho fá-lo normalmente como último recurso e em resultado de um grande desequilíbrio de forças e de acesso à informação.

A ação dos denunciantes pode ser absolutamente necessária nos casos em que outras formas menos radicais de expor irregularidades não são possíveis ou quando esses denunciantes não têm forma de fazer ouvir a sua voz no espaço público. Ou, ainda, quando o equilíbrio entre a privacidade e o interesse público está desproporcionadamente inclinado em direção à primeira.

Um manto de secretismo

O facto de os casos mais recentes de denuncias estarem relacionados com a tecnologia e com os seus impactos na sociedade não deve ser uma surpresa. No entanto, esses casos são também uma fonte de preocupação, uma vez que indiciam um conjunto de processos que afetam o funcionamento da democracia – como por exemplo a forma como os algoritmos determinam as notícias que as pessoas vêem – e que, na realidade, estão envoltos num manto de secretismo.

No seu livro ‘The Black Box Society’, Frank Pasquale usou a metáfora de uma ‘caixa negra’ para descrever os mecanismo subjacentes a algumas das funções societais no contexto do ‘surveillance capitalism’. Pasquale usou a imagem de uma ‘caixa negra’ para ilustrar a forma como nós ´somos cada vez mais monitorizados pelas empresas e pelos governos’, mas na realidade ‘não temos noção da quantidade de informação que é compilada sobre nós, nem de como é usada ou das suas consequências.’

Na verdade é esta assimetria informativa que governa o espaço público atualmente, com os algoritmos das grandes empresas de tecnologia a controlarem um grande número de operações e funções que têm um impacto importante no público, mas dos quais este não tem conhecimento. Esta questão tende a tornar-se ainda mais urgente, tendo em conta os desenvolvimentos rápidos da inteligência artificial e do ‘machine learning’, que resultam precisamente da análise massiva de dados. Neste momento, a únicas entidades capazes de controlar esse processo são as grandes empresas tecnológicas.

Exigências contraditórias

A cada vez maior privatização da esfera pública está também a gerar uma tensão crescente entre as necessidades de privacidade, por um lado, e de transparência, por outro. Isto já tinha sido notado na esfera da governação, na qual existe uma longa tradição de caracterizar como segredo de estado muita da informação acerca dos setores público e militar.

Essa tensão irá necessariamente gerar mais denúncias e mais fugas de informação. As próprias empresas de Silicon Valley já sofreram na pele esse fenómeno. Em junho de 2017, por exemplo, a ProPublica publicou uma investigação sobre as diretrizes de remoção de conteúdos do Facebook que partiu de documentos fornecidos por uma fonte interna. Cerca de um mês antes, o The Guardian também tinha publicado uma outra investigação com base em cerca de uma centena de manuais de moderação de conteúdos fornecidos por uma fonte interna e anónima.

Em Agosto de 2017, o site italiano Valigia Blu publicou informações detalhadas sobre como a moderação de conteúdos e a censura funcionam no contexto italiano. Mais uma vez, as provas foram fornecidas por um empregado de uma empresa que trabalha para o Facebook precisamente na área da moderação de conteúdo. Finalmente, em outubro de 2018, o site de extrema direita norte-americano Breibart publicou um relatório interno da Google detalhando as políticas da empresa em termos de censura dos conteúdos.

Em nome do interesse público

Em dezembro de 2018, um cientista ex-funcionário da Google chamado Jack Paulsen causou algum furor quando afirmou ao London Times que evitar fugas de informação era a prioridade das prioridades para a Google. No futuro, a incidência deste tipo de fugas nas empresas de Silicon Valley só tenderá a aumentar. Embora, claro, os jornalistas devam saber distinguir entre as denúncias que envolvem verdadeiro interesse público e aquilo que é apenas espionagem industrial.

Em 2015, o especialista e professor de jornalismo Dan Gillmor sublinhou a importância de os jornalistas se envolverem nestes debates sobre o papel das tecnologias de informação na sociedade em geral. Gillmor afirmou que, se estiverem realmente interessado em manter a função de fiscalização dos poderes que lhes está atribuída, os jornalistas têm que melhorar a sua compreensão destas questões complexas e têm que conseguir ‘abrir’ as ‘caixas negras’ da sociedade, promovendo a transparência e a responsabilização dos poderosos.

Este artigo foi originalmente publicado pelo ‘La Nostra Città Futura’, o magazine cultural online da fundação Feltrinelli, está também disponível na versão italiana do EJO e é aqui usado com autorização do autor. As opiniões expressas neste website são as dos autores e não refletem necessariamente as opiniões e posições do EJO.

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