Porque o direito ao esquecimento é um preceito fundamental na era da transparência.
Em outubro de 2006, a jovem Nikki Catsouras, de 18 anos, perdeu a vida em um violento acidente automobilístico em Orange County, Califórnia. Devido à gravidade da colisão, Nikki teve partes do corpo dilaceradas. A Patrulha Rodoviária da Califórnia, seguindo o protocolo padrão, fez fotos do local e do cadáver da jovem, para as atividades de perícia. Por causa do terrível estado em que ficou o corpo de Nikki, os legistas não permitiram que a família fizesse o reconhecimento dos restos mortais.
Algumas semanas mais tarde, Christos Catsouras, pai de Nikki, soube através de um vizinho que as imagens do acidente e do corpo da filha estavam em circulação pela Internet. Chocado com a notícia, Christos contatou a polícia californiana, que após investigações apurou que dois funcionários ligados ao seu quadro de pessoal vazaram as fotos, sob o argumento de que queriam assustar parentes e amigos durante as festividades de Halloweeen.
Indignado com a exposição que a morte de sua filha ganhou na Internet, Christos iniciou uma verdadeira batalha judicial pela retirada das imagens veiculadas através da rede mundial de computadores. Caso de semelhante repercussão ocorreu no Brasil, em junho deste ano, quando fotografias do cantor sertanejo Cristiano Araújo, morto em um acidente automobilístico, foram divulgadas em diversas redes sociais por funcionários da clínica onde o corpo do artista foi preparado para o velório.
Tais casos trazem à tona uma questão de extrema relevância e necessário debate na era da informação instantânea: como combater a ideia da Internet como uma terra sem lei, palco de múltiplos abusos quando o tema é a dignidade humana e o respeito à honra e à imagem das pessoas?
Direito ao esquecimento, direito fundamental
Em 1998, o advogado espanhol Mario Costeja González teve seu nome publicado em notícia veiculada pelo periódico La Vanguardia, em página que divulgava anúncios de leilões de imóveis por conta de dívidas com o governo. Tendo quitado sua dívida àquela altura, Costeja passou a pleitear a retirada dos dados que o identificavam, pois permaneciam visíveis pela Internet, apesar dos anos passados e da extinção do débito. Em 2010, a Agência de Proteção de Dados espanhola negou o pedido em relação aos arquivos do jornal La Vanguardia, mas determinou que o Google retirasse as informações de seus resultados de buscas.
Na primavera de 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia disse em decisão sobre o caso que todos os indivíduos residentes nos países sob sua jurisdição têm o direito de proibir o Google de disponibilizar links para artigos contendo informações pessoais que forem considerados inadequados, irrelevantes – ou, mesmo que relevantes, forem excessivos em relação às finalidades para a qual foram tratados, à luz do tempo decorrido. A decisão sagrou em definitivo o direito ao esquecimento, instituto que resguarda aos indivíduos a possibilidade de mandar apagar ou modificar informações a seu respeito que estejam disponíveis em plataformas analógicas ou digitais de armazenamento de dados.
Uma das primeiras menções ao direito ao esquecimento em textos legislativos figura na lei francesa de 6 de Janeiro de 1978, relativa à Informática, aos Arquivos e às Liberdades. O conceito está intimamente relacionado ao direito à privacidade, garantia que possui raiz constitucional e legal em diversos ordenamentos jurídicos ao redor do planeta, pois constitui uma vertente da dignidade do ser humano, do direito à intimidade, honra e imagem – garantias tidas por fundamentais.
O caráter perene, global e eternamente disponível das informações veiculadas por meios digitais tornou o debate sobre o direito ao esquecimento inevitável e urgente. Revenge porn, cyberbullying, as violações morais de toda espécie e as “penas informacionais”, cujo tempo de execução supera (e muito) os limites impostos pelas penas clássicas descritas nos Códigos de Processo Penal, são alguns exemplos das inúmeras situações que clamam pelo exercício e proteção do direito ao esquecimento na contemporaneidade.
O tema é novo e suscita vários questionamentos: como recomeçar “do zero”, sem um passado informacional que prejudique as relações sociais presentes e futuras? O que vem antes: o direito à informação ou o direito ao esquecimento? Quais os reais limites da fronteira que separa privacidade de liberdade de expressão e de imprensa? O que constitui, de fato, o interesse público?
Memória eterna, omnipresente e infinita
Pesquisa realizada pela Universidade de Columbia em 2012 aponta para um fenômeno curioso: as pessoas estão cada vez mais dependentes das informações disponíveis na Internet. Utilizamos os motores de busca on-line como uma espécie de memória externa auxiliar. Se já não recordamos o nome do ator ou atriz que protagonizou determinado filme, buscamos em sites como o Google; se queremos saber a data em que um amigo faz aniversário, procuramos pela informação em seu perfil no Facebook. Isso não significa que estamos ficando “desmemoriados”, mas sim que utilizamos a Internet como uma extensão de nossa própria memória – ideia que nos faz recordar Marshall McLuhan e sua obra visionária publicada em 1964, “Understanding Media: The Extension of Man”.
A gigantesca quantidade de novas notícias publicadas, textos, vídeos e músicas disponibilizados em sites, blogs, fóruns de discussão e redes sociais diariamente não é a única característica distintiva da Internet em relação aos outros meios de comunicação de massa. A disponibilidade imediata e global dessas produções humanas é a marca que diferencia a Internet dos demais meios de comunicação que lhe antecederam. Vivemos em um espaço global, repleto de falhas de segurança, onde o voyeurismo é institucionalizado e tudo corre o risco potencial de se tornar produto à venda, exposto na gigantesca vitrine que é a rede mundial de computadores – até mesmo nossas vidas.
As memórias individuais e coletivas não estão apenas globalmente disponíveis: a Internet as tornou eternas, sempre presentes, facilmente recuperáveis e prontas para serem (re)expostas. Uma família atingida por um crime, uma tragédia, pode ter sua ferida frequentemente reaberta pelo risco constante do resgate de notícias e imagens relacionadas ao acontecimento que a atingiu. Será que estávamos preparados para esse efeito colateral?
É impossível apagar fatos passados ou reescrever a própria história. Mas o direito ao esquecimento oferece em nosso tempo a esperança de retomada do curso normal da existência, além de representar uma possibilidade de discutir o uso que é dado aos eventos pretéritos da vida de alguém nos meios de comunicação social, sobretudo em plataformas digitais. É preciso abordar essa questão sob o ponto de vista da literacia mediática e do papel ético e social dos produtores/utilizadores/consumidores de informação e comunicação – uma tarefa delicada e complexa, porém urgente.
Créditos da fotografia: Flickr – Pictr73
Tags:cyberbulling, direito ao esquecimento, media, memória digital