A verdade por detrás das «filter bubbles»: destruindo alguns mitos

Fevereiro 5, 2020 • Investigação, Últimas • by

Muitas vozes alertam para a possibilidade de as redes sociais poderem estar a filtrar notícias de que não gostamos. Eis o que a investigação diz sobre isso.

Uma filter bubble provoca um estado de isolamento intelectual ou ideológico que pode resultar de algoritmos que nos fornecem informação com que concordamos, com base no nosso comportamento passado e histórico de pesquisas. É um termo bastante popular da autoria do ativista da Internet Eli Pariser que escreveu um livro sobre o tema. No entanto, segundo a perspectiva do investigador sénior, do Reuters Institute for the Study of Journalism (RISJ), Richard Fletcher, expressa num dos recentes seminários do RISJ, a investigação académica sobre o tema revela uma história diferente sobre filter bubbles. Aqui fica uma transcrição editada da sua apresentação.

O que é uma filter bubble? Será idêntica a uma câmara de eco?

As pessoas usam serviços como o Facebook, Twitter e Apple News para receber notícias. Uma parte das notícias que as pessoas vêm nestas plataformas foi selecionada automaticamente por algoritmos. Os algoritmos fizeram essa seleção usando dados que foram recolhidos por plataformas, com base no nosso padrão de utilização anterior e nos dados que fomos fornecendo voluntariamente às plataformas. Obviamente, o receio é que este processo de seleção possa reforçar ainda mais os nossos padrões de consumo.

Pessoalmente, acho que as câmaras de eco e as filter bubbles são ligeiramente diferentes. Uma câmara de eco pode acontecer quando estamos sobreexpostos a notícias que nos agradam ou com as quais concordamos, distorcendo potencialmente a nossa percepção da realidade por estarmos demasiado atentos a um dos lados e abstraídos do que se passa no outro lado. E isso pode levar-nos a pensar que a realidade talvez seja mesmo essa.

As filter bubbles descrevem uma situação em que as notícias de que não gostamos ou discordamos são filtradas automaticamente, podendo ter o efeito de restringir a nossa noção da realidade. Esta distinção é importante porque as câmaras de eco podem resultar da filtragem ou de outros processos, mas as filter bubbles são sempre o resultado da filtragem por algorítmos.

Porque é que o conceito das filter bubbles é tão popular?

As filter bubbles traduzem uma metáfora muito poderosa. Também os mecanismos que acabei de descrever parecem bastante plausíveis. São compreensíveis a todos e, de alguma forma, até fazem sentido.

A ideia da filter bubble é bastante proeminente e teve impacto na nossa forma de encarar a política desde a eleição de Donald Trump. Um artigo publicado na revista Wired teve a ousadia de defender que as filter bubbles estavam a destruir a democracia. E recentemente, em 2017, Bill Gates apontou as filter bubbles como um problema sério nas notícias. Ambas as perspetivas demonstram o impacto destas ideias em duas fontes que não são propriamente céticas ao nível da tecnologia. A existência das filter bubbles é amplamente aceite em muitos círculos.

Como é que as pessoas recebem as notícias?

Talvez seja útil começar pelo princípio. E a forma mais fácil de começar talvez seja perguntar se as pessoas estão realmente a usar a Internet para receber notícias, e eu acho que a resposta a essa pergunta é um claro sim.

A grande maioria dos dados que eu recolhi junto de uma equipa do Reuters Institute são extraídos do Digital News Report, a nossa investigação anual sobre a utilização de notícias em 38 países diferentes, dispersos pelos cinco continentes, com especial incidência na Europa. Cerca de 75.000 pessoas responderam à sondagem. A sondagem foi conduzida pelo YouGov, mas fomos nós que concebemos o questionário.

Quando questionámos as pessoas quanto à sua principal fonte de notícias, um número aproximadamente igual de pessoas apontou o on-line e a televisão. Em alguns países, a TV está ligeiramente à frente. Em alguns países, o online destaca-se ligeiramente. Mas, de um modo geral, vemos um padrão muito semelhante quanto à TV e ao on-line, ambos muito à frente da imprensa e da rádio.

Fontes de notícias por faixa etária

Também vemos diferenças quando analisamos as faixas etárias. A TV tende a ser a principal fonte de notícias para pessoas com mais de 45 anos. Nas pessoas com menos de 45 anos a maior probabilidade de consumo de notícias vai para o on-line. Temos vindo a acompanhar a utilização das redes sociais para notícias em diferentes países desde 2013.

De 2013 a 2016 registou-se um crescimento consistente na utilização das redes sociais para notícias. Portanto, a proporção de pessoas que admitiram tê-lo feito semanalmente aumentou de cerca de 25% em 2013 para mais de 50% em 2016, mas os números esbateram-se nos últimos três anos.

O Facebook e outras fontes noticiosas nas redes sociais

O Facebook e outras fontes noticiosas nas redes sociais

Se aprofundarmos um pouco mais e analisarmos as plataformas individualmente, podemos ver que na maioria dos países o Facebook é a plataforma dominante para fins noticiosos. O uso de notícias no Facebook manteve-se na ordem dos 35% da população nacional entre os países de que temos dados desde 2014. Temos vindo a assistir a uma ligeira queda de 2016 para 2018. Durante o mesmo período vimos outras redes, como o WhatsApp, a tornar-se cada vez mais importantes no consumo de notícias. Estes são tipos de redes sociais muito diferentes, mas estão agrupados na categoria de redes sociais. Portanto, o uso do WhatsApp para notícias cresceu de cerca de 10% para 16% nos últimos cinco anos e o Instagram teve um crescimento semelhante.

• APRESENTAÇÃO: The truth behind filter bubbles: bursting some myths

Que outros algoritmos influenciam o consumo de notícias?

Os motores de busca, email, alertas móveis e agregadores também dependem de algoritmos para, de alguma forma, fornecer notícias às pessoas.

Quando perguntamos às pessoas qual é a principal fonte de notícias on-line, cerca de um terço diz que é pelo acesso direto a sites e apps de produtores de notícias, como a BBC News ou o The Guardian no Reino Unido. Os restantes dois terços afirmam que o principal meio de consumo de notícias é o que demoninamos de porta lateral, que inclui serviços como pesquisas, redes sociais, etc. E alguns destes serviços dependem de algoritmos em níveis muito distintos.

Acesso às notícias pela porta lateral

Acesso às notícias pela porta lateral

Portanto, quando pensamos nas filter bubbles, o potencial de preocupação é evidente. É claro que os algoritmos e serviços orientados por algoritmos são muito importantes e muitas pessoas estão a usá-los para o consumo de notícias online.

Como funciona a personalização?

Podemos distinguir entre personalização auto-selecionada e personalização pré-selecionada.

A personalização auto-selecionada refere-se às personalizações que fazemos voluntariamente para nós próprios, e isso é particularmente importante quando se trata de notícias. As pessoas sempre tomaram decisões para personalizar o seu consumo de notícias. Tomam decisões quanto aos jornais a comprar, os canais de TV a assistir e, ao mesmo tempo, quanto aos meios que desejam evitar.

A academia descreve-a como exposição seletiva. Sabemos que é influenciada por uma série de variáveis diferentes, como o nível de interesse das pessoas pelas notícias, as suas convicções políticas, entre muitas outras. Esta é uma constante que se tem verificado quase sempre.

A personalização pré-selecionada é a personalização que é induzida às pessoas, por vezes através de algoritmos, e às vezes sem o seu conhecimento. E isto está diretamente relacionado com a idéia das filter bubbles, porque os algoritmos poderão estar a fazer escolhas em nome das pessoas sem que elas tenham plena consciência disso.

Esta distinção é particularmente importante porque devemos evitar comparar a personalização pré-selecionada e os seus efeitos num mundo em que as pessoas não fazem elas próprias qualquer tipo de personalização. Não podemos assumir que no offline, ou quando as pessoas selecionam notícias on-line, estão a fazê-lo de uma forma completamente aleatória. Em certa medida, as pessoas estão sempre a fazer algum tipo de personalização e, se queremos entender o verdadeiro alcance da personalização pré-selecionada, temos de a comparar com uma alternativa realista, não com ideais hipotéticos.

Em particular, é importante não romantizar a natureza da utilização das notícias offline para muitas pessoas. Um dos primeiros estudos que fizemos nesta área analisou a forma como as pessoas selecionam as notícias on-line em comparação com o offline. Examinámos até que ponto o público de determinados meios de notícias do Reino Unido se sobrepunham uns aos outros.

Quando as pessoas estão offline, mantêm-se fieis a um par de fontes de notícias preferidas. Elas tendem a aprofundar essas fontes de notícias e não costumam desviar-se delas. O online é um pouco diferente. A audiência de cada meio é menor porque as pessoas dispersam ligeiramente o consumo de notícias por vários diferentes meios noticiosos.

As notícias on-line são geralmente gratuitas, para que as pessoas possam experimentar notícias de diferentes fontes, e constatamos que essencialmente a personalização auto-selecionada é mais acentuado no off-line do que on-line. É por isso que é importante comparar as notícias online face a uma alternativa realista, e não a um ideal.

Que efeito têm as redes sociais nas dietas noticiosas das pessoas?

As redes sociais combinam a personalização auto-selecionada com a personalização pré-selecionada. Também temos a noção de que as pessoas decidem seguir certos meios de notícias em detrimeto de outros. Mas também é possível que os algoritmos ocultem notícias às pessoas, sobretudo as notíciais em que não estão interessadas ou de meios por quem não têm um gosto particular. O tempo das pessoas é limitado, portanto as decisões tomadas pelos algoritmos irão influenciar o que elas vêm quando estão a usar o Facebook.

Para entender como as redes sociais moldam o acesso às notícias, comparámos as dietas de notícias de pessoas que não usam redes sociais com outros dois grupos de pessoas: um grupo que disse usar intencionalmente as redes sociais para notícias e outro grupo que disse que não usar intencionalmente as redes sociais para consumo de notícias mas que vê as notícias quando estão nas redes sociais com outros objetivos. Nesse sentido, reolhemos dados do Reino Unido, EUA, Itália e Austrália e estudámos os efeitos da utilização das redes sociais em diferentes grupos demográficos e em diferentes redes sociais.

Eis o que descobrimos. As pessoas que usam redes sociais para notícias, em particular se as estão a usar por outras razões, ficam acidentalmente expostas a notícias enquanto permanecem lá, o que aumenta a quantidade de notícias consumidas pelas pessoas em comparação com o grupo que não usa em absoluto as redes sociais. Portanto, o grupo utilizador de redes sociais usa cada vez mais diferentes fontes de notícias on-line.

Curiosamente, o efeito foi mais forte nas pessoas mais jovens, talvez por estarem mais à vontade nas redes sociais e serem mais ativas nestas plataformas. O efeito foi igualmente mais forte nas pessoas que não têm grande interesse nas notícias. Também descobrimos que o efeito foi mais forte no YouTube e no Twitter do que no Facebook, um dado importante que importa reter.

O nosso estudo evidenciou que a maioria das pessoas, principalmente as que usam redes sociais, não tem grande interesse nas notícias. E isto revela-se particularmente importante na web, porque este é um ambiente de media de elevada possibilidade de escolha. Para as pessoas que não estão interessadas em notícias, este é um ambiente que lhes permite excluir facilmente. Mas como estes são uitlizadores habituais das redes sociais, ficam expostas acidentalmente a notícias difundidas pelas redes sociais, mesmo quando não as procuram.

Os motores de busca criam filter bubbles?

Os motores de busca são diferentes das redes sociais. Quando as pessoas carregam um motores de busca de notícias, procuram intencionalmente notícias. Porém, quando procuramos um tópico específico é provável que os motores de busca apliquem uma seleção algorítmica com base nos dados recolhidos durante a nossa utilização anterior. Portanto, também no uso dos motores de busca há a possibilidade de haver uma seleção de algorítmos, baseada no histórico de utilização, que encerra o uitilizador numa bolha de filtro.

Comparámos as dietas de notícias de pessoas que pesquisam notícias com as dietas de pessoas que dizem não usar motores de busca para notícias em quatro países e estudámos as dietas de notícias desses dois grupos em termos daquilo que denominámos de diversidade e equilíbrio.

O que descobrimos é que um processo aleatório automatizado acaba por diversificar efetivamente as dietas de notícias das pessoas. As pessoas que consultam notícias com base em motores de busca usam, em média, mais fontes de notícias do que as restantes. Mais importante, é mais provável que consultem fontes das várias áreas políticas, da esquerda e da direita.

As pessoas que dependem sobretudo da auto-seleção tendem a ter uma dieta de notícias bastante desequilibrada. Acabam por ter mais fontes para uma das áreas políticas, mais para a direita ou mais para a esquerda. As pessoas que usam motores de busca têm tendência a fazer uma divisão mais uniforme entre os dois espetros da política.

O que dizem outros estudos sobre as filter bubbles?

Os resultados do nosso estudo estão alinhados com diferentes estudos na mesma área que analisaram este problema numa perspetiva ligeiramente diferente. Um dos estudos comparou os resultados de investigação sobre diferentes tipos de pessoas, sobretudo em audiências de pessoas republicanas e democratas nos EUA. E o que este estudo descobriu foi essencialmente que os resultados obtidos pelas pessoas quando pesquisaram tópicos políticos eram mais ou menos os mesmos. Portanto, não houve evidências reais de que as pessoas com opiniões distintas tenham obtido resultados de pesquisa diferentes.

Um dos problemas de depender dos dados de sondagens é que as pessoas não têm grande memória quanto às suas fontes de notícias. Este tem sido um problema consistente há algum tempo. Por essa razão optámos por rastrear o acesso à web num painel de pessoas no Reino Unido e comparámos situações em que as pessoas acedem diretamente a fontes de notícias com outros cenários em que as pessoas acedem a notícias via Facebook, Twitter e outros serviços diferentes.

E descobrimos que quanto mais as pessoas acedem diretamente às fontes de informação, menos diversificada é sua dieta noticiosa. Não são apenas as pessoas que estão a recorrer a mais fontes noticiosas quando vêm notícias através das redes sociais. Estão a usar muitas fontes diferentes e o equilíbrio entre essas fontes aumenta face à diversidade.

Este é um pequeno resumo do trabalho que temos vindo a fazer nesta área. Mas é bastante representativo do trabalho desenvolvido nesta área em geral. Existem numerosos estudos a demonstar poucas evidências de filter bubbles ou, na melhor das hipóteses, evidências mistas. Quase não existem estudos a constatar uma evidência muito forte deste tipo de efeitos.

As redes sociais incentivam a polarização?

Apesar de podermos estar a assistir a uma maior diversidade quando usamos as redes sociais e as pesquisas, é possível que essa diversidade resulte de fontes de notícias mais partidarizadas ou polarizadoras. Um estudo publicado por uma equipa de investigadores nos EUA analisou a exposição das pessoas ao lado oposto da política no Twitter. Ou seja, pessoas com tendência republicana recebiam mensagens no Twitter do lado democrata e vice-versa. Os investigadores analisaram as atitudes antes e depois deste processo e descobriram que quando as pessoas prestavam atenção às mensagens do lado oposto as suas atitudes começavam a polarizar-se e a tornar-se mais fundamentadas nas suas tendências originais.

Abordámos as mesmas questões de uma forma um pouco diferente. Medimos o nível de polarização existente em distintos ambientes de notícias e em diferentes países. Analisámos o público de meios de comunicação específicos e constatámos como esse público era diferente em termos de composição de pessoas de esquerda e direita, em comparação com a população geral. Nos EUA, sem surpresa, descobrimos que a Fox News tem uma audiência de notícias muito mais inclinada à direita do que a população em geral. Os EUA têm um ambiente de notícias polarizadas porque as bolhas de audiências são muito mais dispersas do que noutros países.

O que também podemos fazer nesses países é comparar o online com o offline. Ao analisar 12 países diferentes descobrimos que, em oito dos 12 casos, o público de notícias on-line é um pouco mais polarizado e disperso do que o público offline. Em alguns países, os números são praticamente idênticos, ou com o offline a revelar-se ligeiramente mais polarizado. No entanto, em geral os ambientes de notícias on-line parecem ser mais polarizados. Talvez por haver um maior incentivo para que os meios noticiosos produzirem mais conteúdo partidrizado online.

Porque não concentrar-nos nas filter bubbles?

Incidir nas filter bubbles pode induzir-nos em mal entendidos quanto tratamos dos mecanismos em jogo e pode distrair-nos de problemas bem mais prementes. Esta é uma razão importante porque alguns destes problemas estão ligados, de alguma forma, à utilização das plataformas. Não é que as plataformas sejam a causa, mas elas são parte integrante do cenário.

A maioria das melhores evidências empíricas independentes que temos disponíveis parece sugerir que o consumo de notícias on-line através de motores de busca e redes sociais é mais diversificado. Mas existe a possibilidade de que essa diversidade esteja a provocar algum tipo de polarização, tanto nas atitudes como na utilização. Isto é interessante porque, de certa forma, é o oposto do que tinha previsto a teoria da «filter bubble hypothesis».

Esta teoria defende que, efectivamente, teremos menos diversidade e haverá consequências negativas disso. Portanto, o resultado final poderá ser o mesmo. Mas a teoria falha na captura dos mecanismos.

Claro que sabemos que as plataformas estão a alterar constantemente a forma de distribuir as notícias às pessoas. E a forma como as pessoas estão a receber as notícias também está a mudar. Portanto, temos de examinar criticamente os efeitos da seleção algorítmica no consumo de notícias, porque o que era verdade nos últimos anos não o será necessariamente no futuro.

Mais importante que tudo, e este é um argumento retirado de um livro recente de Axel Bruns, o foco nas filter bubbles pode estar a impedir-nos de endereçar adequadamente as causas mais profundas das divisões, tanto na política como na sociedade.

Enquanto examinamos as plataformas e os seus impactos nas notícias, torna-se crucial evitar cair na armadilha de ignorar alguns dos fatores potencialmente mais importantes que estão a criar alguns dos problemas que enfrentamos.

 


Autor: Dr Richard Fletcher
Artigo original

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