Reportar crimes de ódio: informar, não incitando

Março 22, 2016 • Ética e Deontologia, Jornalismo, Últimas • by

Campos de refugiados incendiados por toda a Europa, crianças imigrantes atacadas por homens encapuçados em Estocolmo, o ataque de Anders Behring Breivik num campo da juventude social democrata na Noruega e uma série de atos levados a cabo por neo-nazis na Alemanha – reportar crimes de ódio e extremismo de direita é vital nas sociedades democráticas. Mas como podem os jornalistas fazê-lo sem incitar a mais atos de violência? É possível aos jornalistas informar as suas audiências sem promover plataformas ideológicas por detrás da reportação de cada crime? A cobertura noticiosa serve de impedimento ou de inspiração?

Num estudo recente, Between NS-Propaganda and Facebook, ex membros destacados de grupos extremistas e neo-nazis por toda a Alemanha foram entrevistados sobre o impacto dos média nas ações e na própria ideologia das suas organizações.

O estudo conclui que os jornalistas deverão continuar a reportar crimes de ódio, mas com alguns cuidados:
– Os grupos extremistas monitorizam intensivamente a cobertura noticiosa e usam-na para desenvolver estratégias.
– Os extremistas gostam de peças jornalísticas que denunciem a sua brutalidade
– Algumas reportagens podem ajudar os grupos de extrema direita a cumprir o objectivo de criar um clima de ansiedade e de atrair mais recrutas para a sua causa, dispostos a usar da violência
– Os jornalistas deverão focar-se nas vítimas dos crimes de ódio, não nos seus suspeitos.
– Não se devem ignorar argumentos ideológicos, mas sim contextualizá-los.

O estudo, em cooperação com o EXIT – uma organização alemã que ajuda antigos membros de grupos de extrema direita a voltar a uma vida normal – foi baseado em entrevistas qualitativas conduzidas em várias cidades alemãs em 2014.

Stefan B foi um dos entrevistados. Como ex líder e respeitado neo-nazi no sul da Alemanha, é um dos poucos que compreendem o impacto das coberturas noticiosas sobre extremismo de direita. Hoje trabalha como jornalista freelancer, tentando informar o público sobre os perigos da ideologia de extrema-direita. “Não é uma coisa fácil de fazer”, enfatiza.

Não apenas é alvo de intimidação e ameaças por parte de antigos companheiros, mas também se depara com a dificuldade de saber reportar a violência de extrema-direita sem se tornar uma fonte potencial de inspiração para outros extremistas que estão dispostos a ir além das formas de protesto político.

Extremistas de direita podem ser professores, banqueiros ou punks

Stefan é baixo, tem olhos escuros e cabelo longo e escuro, que usa solto. É difícil acreditar que tenha sido neo-nazi. Mas passou muito tempo desde que era possível identificar um neo-nazi através do uso de botas de combate ou casacos bomber. Ele fala-nos de diferentes grupos de extrema direita cujos membros se assemelham parcialmente a punks, parcialmente a banqueiros. Critica o estereótipo e as representações que são feitas dos extremistas de direita nos média. “As pessoas são retratadas como sendo estúpidas, embora não seja esse o caso.

Há professores ativos nos grupos de extrema direita. Há pessoas muito inteligentes – mas também há imensos idiotas, não vou negá-lo, que são igualmente perigosos – mas não podemos esquecer que não apenas aqueles nazis que batem noutros são perigosos, mas também aqueles que estrategicamente se tentam infiltrar e mudar a nossa sociedade”.

Manifestamente relaxado e lúcido, Stefan explica que é atormentado por sentimentos de culpa. Os laços ao neo-nazismo e outras partes da comunidade de extrema direita são numerosos e profundos. A dado momento ele conheceu alegados membros da célula terrorista neo-nazi, Beate Zschäpe, do National Socialist Underground (NSU) que durante anos operou e assassinou em várias regiões da Alemanha sem aparecer no radar da polícia.

O facto de o número de crimes de ódio com origem xenófoba terem surgido apenas depois de alguns crimes perpetrados pela NSU terem sido descobertos e largamente divulgados pelos média, é uma evidência de que existe uma linha ténue entre informar o público e motivar imitadores. Em média, três crimes de origem xenófoba são cometidos na Alemanha, todos os dias. Tendo sido um membro da cena de extrema direita, durante anos, Stefan declara ter aprendido com os seus erros e ter mudado. Agora, diz-nos, é tempo de fazer a sua parte.

Grupos de extremistas cometem crimes violentos para ter a atenção dos média

Markus e André faziam também parte da cena da extrema-direita. Lideraram um grupo de nacionalistas autónomos, cujos membros se assemelhavam mais a extremistas de esquerda do que a neo-nazis. Também estão convencidos de que é importante que os jornalistas divulguem as diferentes caras da cena de extrema-direita. Ignorar seria uma forma de apoiar os extremistas, acreditam. Se os mais novos não sabem a que se assemelha um neo-nazi, poderia ser mais fácil recrutá-los para uma dada ideologia, argumentam.

Markus e André deixaram o grupo ao mesmo tempo; apoiaram-se e motivaram-se mutuamente. Ambos referem que a cobertura dos média preveniu, ao invés de motivar, as suas saídas. Markus critica a atitude jornalística que procura evitar os argumentos da ideologia de extrema-direita: “Como nunca houve uma discussão pensei sempre que os média tinham medo de me retratar politicamente…”, argumenta.

André também acredita que os jornalistas falham na grande maioria das vezes. Fala-nos de grupos extremistas que cometem crimes violentos por forma a chamar a atenção dos média – geralmente são bem sucedidos: “É como uma espécie de marca, porque sabes que és tratado de uma certa maneira nos média. Para os grupos esta é uma importante forma de identificação. Isto também atrai muitas pessoas”, defende.

O orgulho por parte dos extremistas, no facto de aparecerem em reportagens jornalísticas, leva inclusivamente extremistas de direita a coleccionar material jornalístico sobre as suas actividades ilegais.
Os extremistas exploram os média para obter maiores audiências.

André e Markus referem que os extremistas exploram os vários média por forma a obterem audiências maiores e por forma a ameaçarem determinados grupos sociais: “Imaginem que há extremistas de direita que sujam uma sinagoga com sangue, destroem as janelas com uma cabeça de porco”, refere. Os mass média servem como mensageiro. Assim não é apenas uma comunidade judaica específica que é afectada, mas todas as comunidades judaicas. Assim, também é uma questão de criar um ambiente de violência”.

Que consequências devem os jornalistas tirar destas conclusões? Devem parar simplesmente de reportar violência de extrema direita?

“Por favor não”, refere Stefan, o jornalista freelance. “Repressão, proibição de camaradagem só é possível devido à pressão dos mass média. É enfraquecer grandemente a cena neo-nazi”.
Na sua própria descrição da violência e extremismo de direita, Stefan tenta focar-se mais nas vítimas e na punição do que nos suspeitos. Isto é um meio de impedimento, na medida em que mesmos os extremistas de direita detestam a prisão.

Quando questionado sobre recomendações para outros jornalistas, ele aconselha os jornalistas a não alimentar discussões sobre ideologias e a contextualizar as declarações dos grupos de direita: “quando as pessoas fazem perguntas sobre a restrição na imigração, ou quando perguntam sobre o repatriamento de imigantes, o que é que isto significa exactamente? Assemelha-se a quê? Houve alguma coisa comparável na história?

Esta contextualização pode ajudar-nos a repensar as atitudes dos grupos de extrema-direita. Na melhor das hipóteses, pode promover uma discussão crítica que poderá levar alguns a abandonar a ideologia.

Stefan puxa a sua cadeira atrás. Tem de conduzir até Dresden para trabalhar numa matéria sobre demonstrações de extrema-direita. Irá provavelmente encontrar-se com alguns seus ex companheiros. Quando perguntado sobre se teme esse reencontro, refere: “Quando me ameaçam, não significa muito. Se eu posso informar outros sobre os perigos da extrema direita e compensá-los pelo que eu fiz no passado, então vale o risco”.

Estrutura teórica: “efeitos recíprocos”

O modelo de “efeitos recíprocos”, por Kepplinger (2007; 2010), serviu como estrutura teórica para a tese de mestrado. Descreve os fortes efeitos dos média na reportação de pessoas pelo seu nome, nos média (e.g. políticos ou celebridades). Assumimos que aqueles efeitos poderiam também ser observados entre grupos onde há uma forte identidade social.

A pesquisa foi conduzida no âmbito de uma tese de mestrado na Ludwig Maximilian University em Munique, que foi publicada no Journal Exit Germany.

O texto original foi publicado no EJO alemão.

Pic credit Flickr Creative Commons: Rufus 46

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